Se fosse pra dar notícia, seria atraso demais... mas já que é pra comentar, vou me dar o direito de falar sobre do dia 15 de maio.
Durante boa parte do dia me senti como um dos personagens do filme "Sinais", de Shayamalan. Eu olhava pela minha janela, escutava a vizinhança, e parecia estar tudo normal. Mas a TV mostrava a todo o momento que o mal estava lá fora, que algo terrível estava para acontecer e que aquilo poderia me alcançar. Era um terror absurdo. Do inimaginável. Do invisível. Do imprevisto. O que mais eles poderiam fazer? Até onde estariam dispostos? Queimariam o ônibus que a Raquel poderia pegar, se viesse para casa? Teriam coragem de metralhar o batalhão de polícia de Higienópolis, um dos bairros mais caros da cidade, e que fica a poucas quadras da minha casa? Sim, este eles tiveram(!!!).
Vi essa notícia um pouco depois do meio-dia. Só o que pensei na hora foi: "Ainda bem que não fui ao banco hoje". Todas as vezes que vou, passo sempre na frente deste batalhão, tanto na ida quanto na volta. E logo depois de pensar nisso, saí de casa. Fui almoçar no restaurante por quilo da esquina, fui resolver minha vida, fui fazer compras, simplesmente saí. Fui capaz de ter o pensamento mais simplório e egoísta motivado pelo medo e da ação mais desprendida de um típico dia comum, como outro qualquer na vida, em menos de meia hora.
Zanzei pelo bairro como sempre faço. Tudo parecia normal. Paro no supermercado, a mesma chatice de sempre. Na rua algumas pessoas estavam rindo, havia sol no céu. Não, deve ser exagero, não tem nada demais acontecendo. Mas tem tanta gente indo pegar o metrô às 15:30... Nisso entro no sacolão: vazio. Umas poucas pessoas comprando coisas. Nada de pescado e de pastel com caldo de cana hoje. Pergunto se eles vão fechar mais cedo e a caixa me responde com um olhar triste que não.
Chego em casa pra deixar as compras, o medo volta: a tv fala em tantas pessoas mortas, um monte de ônibus queimados, gente desiludida, sem saber como e quando chegaria em casa... no orkut e em outros sites rola solto o boato de toque de recolher. Eu e Daniel chegamos a conclusão que temos muito mais medo em casa, por conta das notícias alarmantes, do que na rua. Concluímos também que ainda não temos pão, então saio de novo.
Em menos de uma hora a cidade e o meu bairro haviam mudado completamente: as lojas estavam fechando com uma rapidez absurda. Na quadra que separa a minha casa da padaria, só duas papelarias estavam abertas. Supermercado, escola, oficina, pet-shop, tudo estava fechado, e só passava um pouco das 16:30... chego lá, só eu e mais duas senhoras esperamos a fornada. E cerca de 3 minutos somos mais de 12 pessoas.
Quando chego na minha rua, ela está engarrafada. Ela nunca engarrafa, nem em hora de rush. Uma fila imensa de carros que parece não andar. Nos 10 minutos que devo ter ficado na porta do prédio conversando com o zelador, fico sabendo que o shopping fechou, que um transeunte morreu quando metralharam o batalhão de polícia, e que o engarrafamento (que chega na minha rua) congestiona boa parte da cidade (pouco depois fiquei sabendo que ele chegou a 212 km, quase o maior da história).
Em todos os lugares que passei, só se falava nisso. Em todos, pelo menos uma das partes envolvidas nas conversas pediam um novo massacre do Carandiru. Toda a condenação à violência e o apoio aos direitos humanos sumiu. As pessoas queriam extermínio, sangue. Não sei se por medo, por revolta, por puro sadismo, ou por visão política, mas o resumo da vontade popular era: “bandido bom é bandido morto”. Na Internet alguns pediam a Ditadura. Se as eleições fossem no dia seguinte, o Maluf seria eleito governador do estado, com certeza.
O engarrafamento durou pelo menos mais duas horas. Em compensação, às 21:00 o silêncio era ensurdecedor. Só era quebrado por um ou outro carro que passava em alta velocidade, ou pelo barulho de um helicóptero que fez ronda pela região até pelo menos 00:30. No restante do tempo, voltou aquela sensação de perigo invisível. Eu sabia que estava segura, eu sabia que não tinha nada lá fora. Mas era justamente a certeza de que não havia nada nem ninguém lá fora que fazia pirar. Como o medo podia ter nos levado àquela situação, acuados, escondidos, temendo o invisível? Porque passamos o dia inteiro assistindo televisão, esperando pelo próximo ataque e a próxima contagem de mortos, com um interesse mórbido e com um temor crescente?
*
No dia seguinte o 15 de maio parecia ter sido o 11 de setembro de São Paulo, com a diferença que o inimigo não era estrangeiro ou fanático por nenhuma religião, e (ainda bem) não estava interessado em matar, mas só em causar medo. Se fosse realmente de interesse do PCC causar estragos, bastavam algumas bombas na Consolação e na 23 de maio durante o engarrafamento para instalar o verdadeiro pânico e desespero na cidade. Seria um verdadeiro tsunami de sangue, roubando o termo da Heloísa Helena. Graças aos céus, não foi a intenção.
E pensar no 11 de setembro me fez perguntar onde foi parar o pseudo-orgulho e espírito paulistano que está cidade se gaba de ter. Cadê a atitude e cobrança por parte das pessoas? Cadê o governo mostrando pulso firme? Eu, que nunca fui fã de nenhuma corporação policial, queria que eles continuassem firmes. Nada de Carandiru, isso é contra os meus princípios, mas que essa demonstração de força do PCC não impedissem as investigações e progressos que a policia civil vinha conseguindo. Que eles fossem transparentes. Que o governo paulistano deixasse as questões eleitoreiras de lado e aceitasse reforço policial, se fosse o caso, mas que não negociasse com essa gente. Que nós mantivéssemos esse sentimento de medo no coração por um ano inteiro, ou pelo menos até outubro e cobrássemos mudanças nas urnas.
Mas tudo indica que o governador apertou a mão do bandido.
Na tv, já se falou bem menos sobre o assunto. Nas ruas também. O debate morreu.
Vou continuar desconhecendo o trabalho da polícia, e provavelmente responsabilizando-a por ações e erros que podem ter sido ou não tomados pela corporação.
Hoje já tive a sensação de que essa segunda feira nunca existiu.