Acabo de ler na Folha que o túmulo de Oscar Wilde receberá a proteção de uma redoma de vidro para impedir que os visitantes do Père Lachaise continuem a beijá-lo, o que estaria sendo a causa de sua deterioração. Esta notícia me fez pensar novamente como as questões de gestão e proteção ao patrimônio cultural são complicadas, especialmente quando elas interferem na relação do público com o espaço/obra.
Quando estive visitando a França, mas principalmente na Itália, me surpreendi como o patrimônio cultural desses países sofre com o impacto depredatório das visitações, quase sempre desordenadas e de fluxo excessivo. Particularmente no Palais de Versailles e na Capela Sistina, o público não tem qualquer pudor ou preocupação com a manutenção das obras, disparando flashes descontrolados sobre pinturas ou entrando em levas que pareciam arrastões. Na Capela, a solicitação para que não fossem utilizadas máquinas era constante mas inibia pouca gente, e acabei passando a maior parte do tempo assistindo pessoas sendo expulsas de lá pelos seguranças do que propriamente admirando a obra de Michelangelo.
(O que me faz lançar aqui um grande pedido: por favor, vamos parar com tanto preconceito e auto-crítica, inibindo o acesso do público brasileiro a seus espaços culturais sob acusação de que somos "sem cultura" ou irresponsáveis em relação a nossas obras. Europeus com todo discurso de civilização não são menos curiosos, falhos ou idiotas como nós)
Ainda assim, não posso negar a parcela de mim que lamenta essa decisão em relação ao túmulo de Oscar Wilde. Não cheguei a beijá-lo, mas essa visita teve um significado muito especial porque eu estava na companhia de uma amiga com quem compartilhei a leitura de "O retrato de Dorian Gray", e esse livro permeia toda uma época de nossas vidas, com nascimento de nossa amizade. Eu não tive a intenção de beijá-lo, mas preciso admitir que a visão do túmulo emociona. Com todas aquelas demonstrações de carinho e admiração através das marcas de batom, é impossível não compartilhar o sentimento.
Por isso, que me perdoem os radicais, mas não consigo considerar nesse momento a relação do público com o túmulo de Wilde predatória como a dos outros espaços que citei mais acima. Diferentemente daqueles que mal se dão ao trabalho de observar e conhecer o que visitam, fazendo dos objetos culturais mais uma mercadoria a ser ostentada através de fotos para os amigos, sem qualquer significado particular, a relação dos admiradores de Oscar Wilde se estabelece através do conhecer-reconhecer. Outros defuntos célebres do mesmo cemitério também recebem tratamento semelhante, como Jim Morrison que ganha latas de cerveja, flores e cantorias diárias das músicas do The Doors. Misturam-se, nos dois casos, práticas diversas que vão de celebrações (religiosas ou não) ligadas à morte, sociabilidades de grupos específicos e mesmo manifestações artísticas.
Não pretendo aqui encontrar uma resposta (tem gente muito mais qualificada e com experiência fazendo isso) mas me colocar também diante da questão: quando uma prática cultural como essa confere outros significados ao espaço, mantendo viva a memória e a simbologia do lugar, seria "certo" interferir, proibir, negar às pessoas a manifestação desse sentimento e valor?
Eu entendo perfeitamente o dever de todo gestor em garantir a manutenção do patrimônio, perpetuando sua existência para futuras gerações. E assumindo esse olhar por um momento, é necessário reconhecer que o trabalho se dá com perguntas difíceis de serem administradas, como: onde reside a "alma" do patrimônio? A manutenção material é a necessidade mais importante? A liberdade de manifestação uns compromete a convivência de outros?
Questões de tamanha sensibilidade talvez exijam muito mais políticas de conciliação e revisão do que respostas definitivas. Dependendo de outro objeto em questão, eu provavelmente não seria assim tão aberta a interferências e riscos. De qualquer forma, deixo o meu lamento pelas tantas pessoas que não terão mais a chance de beijar Oscar Wilde.